Há um afã de eliminar Deus do horizonte cultural da sociedade, para fazer prevalecer apenas a horizontalidade hedonista e pragmática de um terrível materialismo. Vão se apagando e se debilitando os tons daquilo que foi um dia uma vigorosa identidade cristã.
O I Seminário Internacional “O Estado Laico e a Liberdade Religiosa”, promovido pelo Conselho Nacional de Justiça e coordenado pelo Ministro Ives Gandra da Silva Martins Filho, reuniu em Brasília, especialistas estrangeiros e brasileiros, teólogos e juristas, para debater a relação entre o Estado e a Igreja, explicitando conceitos-chaves nesta compreensão, como o de laicidade e laicismo, analisando implicações concretas do dia-a-dia, no atual contexto de pluralismo e relativismo cultural. O que ficou evidente na reflexão dos inúmeros expositores, foi a de que a ideologia laicista pode corroer as premissas da laicidade, e tornar-se um laicismo agressivo, de oposição à religião, especialmente a católica, na medida em que deixa de haver a neutralidade do Estado, necessária para garantir o direito à livre expressão e a própria liberdade religiosa. No Brasil, por exemplo, com o Plano Nacional de Direitos Humanos – PNDH3, não há a necessária neutralidade do Estado (como requer a laicidade), e com o laicismo o Estado acaba sendo instrumentalizado por uma ideologia nada laica, mas de índole totalitária e anti-cristã.
O prof. Daniel Sarmiento, que elogiou a decisão do STF na questão homossexual, foi enfático: no debate das grandes questões atuais, o argumento religioso não funciona mais, não convence. Para ele, só vale o argumento das razões públicas. Se o Estado clássico preocupava-se com a formação moral dos cidadãos, o estado pós-moderno e laico está focado apenas na promoção do bem-estar social, buscando ainda a mais absoluta liberdade de todos. Se o indivíduo tem o direito de ter religião, possui também o direito de não tê-la, e cabe ao Estado garantir esse direito, fazendo valer a igualdade e a liberdade. “O Estado tem que estar suficientemente isento”, afirmou o Dr. Hélio Jorge, “com respeito flagrante ao direito das minorias”. No caso do ensino religioso, por exemplo, tendo em vista que ainda a maioria do povo brasileiro é de formação católica, indagou: “aonde vão estar as crianças de religiões diferentes?” E acrescentou: “O poder público não tem direito ao constrangimento, confundindo-se com o pensamento religioso hegemônico”. E em relação à neutralidade do Estado no campo moral, salientou: “o Estado precisa sair da dicotomia bem x mal, com raiz medieval. Desmontemos e desconstruamos esta lógica”.
O prof. Kent também corroborou o pensamento da invalidade do argumento religioso, ressaltando que “o argumento do pecado é fraco para ser mantido”, dizendo ainda que “os juízes não deveriam se basear em razões religiosas”.
O mais enfático foi Daniel Sarmiento, ao falar sobre a judicialização das relações sociais e da própria moral. No contexto do pluralismo religioso, em que contam hoje as matrizes afro-indígenas e outras expressões da religiosidade, os grupos minoritários trouxeram novas demandas e a moral convencional foi questionada. E advertiu: “A tendência não é que o fenômeno páre!”
Sarmiento ainda afirmou que o argumento de que o STF exorbitou suas funções, usurpando-as do poder legislativo, no caso da questão homossexual e do aborto, por exemplo, são argumentos fracos de razão pública. Na defesa do que chamou de democracia deliberativa, disse que não podemos respaldar as decisões da maioria que sejam uma violência à minoria. Nesse sentido, o argumento religioso deve encontrar uma tradução em razão pública, para convencer a todos de suas posições políticas. Sem esta tradução, o discurso religioso não encontrará o respaldo que precisa para convencer os tomadores de decisão a aceitarem as suas convicções, princípios e valores. O fato é que os grupos de interesse a influir nas decisões nacionais atuam no enquadramento das razões públicas. Nem o argumento antropológico vale, para a questão homossexual e a do aborto, especialmente na defesa do direito à vida ao nascituro.
“Já não há um ambiente geral cristão”
É certa a hostilidade crescente ao cristianismo, de modo especial ao catolicismo apostólico romano, por forças adversas que lançam seus dardos contra o edifício moral católico, buscando minar o pilar doutrinário da Igreja. O laicismo se junta a estas forças, visando despojar a sociedade de toda referência cristã. Não se trata de garantir (como assegura a laicidade) a liberdade de expressão e de religião, mas dificultar o máximo possível, desestimular e se preciso mais posteriormente até perseguir os que manifestarem a convicção religiosa. Há um afã de eliminar Deus do horizonte cultural da sociedade, para fazer prevalecer apenas a horizontalidade hedonista e pragmática de um terrível materialismo. “Durante quase 1.500 anos houve o apoio de um ambiente cristão para a transmissão da fé e para a educação cristã. Hoje esse ambiente já não existe nas escolas, nos meios de comunicação social, nas instituições da sociedade”.1 Vão se apagando e se debilitando os tons daquilo que foi um dia uma vigorosa identidade cristã. “Os valores da Igreja e as concepções do mundo moderno parecem divergir cada vez mais”.2 E ainda num cenário diferente do vivido pelos primeiros cristãos, porque as forças adversas têm hoje os meios possantes da tecnologia para seduzir mais impactantemente um número maior de pessoas desinformadas. É preciso reconhecer, portanto, que “já não há um ambiente geral cristão” (p. 209), e é neste deserto em que nos encontramos, que a Igreja é chamada a atuar, e a “criar, por si, as células em que se possa fazer a experiência do apoio mútuo e da caminhada em comum”.3 Um desafio que nos leva a buscar o discernimento para saber “como a Igreja há de viver nesta sociedade cada vez mais descristianizada”.4O fato é que “o cristianismo é uma religião de salvação, soteriológica”5, e é isso que precisamos convencer a geração atual. Por isso é preciso buscar a tradução necessária, para com os argumentos adequados atualizar o que a Igreja anuncia há séculos como valor de vida.
“Apenas convencemos se argumentamos. E a Igreja tem argumentos”, afirma Martim Rhoheimer. E explica que “os documentos do Magistério hoje em dia são fantásticos, por que são fundamentados. Por exemplo, o documento sobre as uniões homossexuais alega razoes seculares, politicamente aceitáveis, sem nenhuma afirmação deduzida da Bíblia, tudo faz parte de um senso comum. Expõe que o matrimonio tem um estatuto particular porque é responsável pelas novas gerações, do seu nascimento, educação, cultura e até a transmissão da riqueza e do saber. As uniões homossexuais não produzem nada disso. Podem ser uniões afetivas, de amizade. A questão não é que a Igreja prefira o amor entre homem e mulher como tal.”6
Se as razões públicas apresentadas pela Igreja Católica são consideradas fracas, pelos laicistas, não devemos esmorecer. “Encontramo-nos sempre na obscuridade da provação e só podemos chamar por Deus: salva-nos outra vez!”7E então a presença na “sarça ardente” nos leva a assumir a missão de voltarmos a estar diante do faraó, para erguer o báculo sagrado e novamente fazer Deus operar aquelas maravilhas que movem a história para a superação de todas as ideologias opressoras do ser humano, como agora se faz necessário superar também os equívocos do laicismo.
Notas:
1. Joseph Ratzinger, O Sal da Terra – O Cristianismo e a Igreja Catolica no Limiar do Terceiro Milênio – um diálogo com Peter Seewald; p. 208, Ed. Imago, Rio de Janeiro, 1997.
2. Ibidem.
3. Ib. p. 209.
4. Ib. p. 208.
5. João Paulo II, Cruzando o limiar da esperança, p. 82, 1ª ed., Livraria Francisco Alves Editora, 1994
6. http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=comnoticias&Itemid=18&task=detalhe&id=10863
7. Joseph Ratzinger/Bento XVI, Jesus de Nazaré: Primeira parte – Do batismo no Jordão à Transfiguração. São Paulo, Planeta do Brasil, 2007, p. 224
Prof. Hermes Rodrigues Nery
Colunista do Blog Evangelizando (+ artigos)
Especialista em Bioética (pela PUC-RJ), Coordenador da Comissão Diocesana em Defesa da Vida e Movimento Legislação e Vida, da Diocese de Taubaté, membro da Comissão em Defesa da Vida do Regional Sul 1 da CNBB, diretor da Associação Nacional Pró-Vida e Pró-Família e da Associação Guadalupe. É casado, tem dois filhos e é catequista. Blog: LIBERTATUM
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